quarta-feira, 30 de abril de 2008

MESTIÇO DE CORPO INTEIRO

Costuma-se dizer que a porta de entrada de um livro é o seu título. Estabelecendo com o texto que antecede uma função de moldura, acaba também por designa-lo, de forma metonímica. Note-se ainda que intitular encerra em si duas operações: por um lado circunscreve, delimita, mas sendo também já um acto de criação, na medida em que estabelece expectativas, criando um primeiro laço empático com o potencial leitor.

Estas questões associam-se ao facto de o título deter um certo poder no sentido de orientar e de determinar a leitura do texto que antecede. Estabelece uma relação entre o fora e o dentro, remetendo para o interior do livro e dialogando desde logo com o leitor.

Uma outra dimensão do título, que aqui queria convocar, refere-se ao relevo semântico e ao peso sócio-cultural que pode assumir, em determinadas circunstâncias. Assim, a propósito de Mestiço de Corpo Inteiro, e sobretudo se conhecermos o percurso pessoal do Delmar Gonçalves – não podemos esquecer as articulações fortes que a obra e o seu autor podem estabelecer, articulações essas que os estudos literários têm vindo a revalorizar, sendo um aspecto com particular pertinência no caso que aqui nos reúne – este relevo semântico e essa dimensão sócio-cultural tem um interesse especial, pois remete-nos para um sintagma que individualiza um sujeito que desde o início se auto-define, iniciando e anunciando logo a partir do título um percurso de desvendamento de si, que constitui, a meu ver, o traço mais marcante deste volume de poesia.

Este percurso de desvendamento é um processo dinâmico, na medida em que se vai concretizar e alimentar a partir da dialéctica que se estabelece entre a construção da identidade do sujeito – marcada por uma complexidade que diversos poemas retratam as leituras que esse sujeito vai fazendo do real exterior. Podemos assim dizer que esse oscila entre uma dimensão mais intimista e a interrogação sobre o mundo, estabelecendo uma tensão entre o interior (o íntimo do sujeito) e o exterior (o mundo que o rodeia).

No que se refere ao primeiro núcleo, notamos que o sujeito procura edificar uma imagem de si mesmo, onde se cruzam diferentes vectores, angústias e paradoxos. Esta dimensão atinge a sua mais completa expressão no poema “E eu sou eu” (Aqui estou eu/ Mestiço de negro e branco/ Severo e brando/ Obstinado e ocioso/ Modesto e orgulhoso) mas cruza o livro todo, devendo ainda reter-se poemas como “Busca incessante”, “Mestiço e Africano” ou “O meu Eu” que revelam os conflitos mais íntimos do sujeito.

O real exterior é fruto de múltiplas insatisfações, que se cruzam directamente com a dimensão anterior mas que se prolongam igualmente num ideal de sociedade – e também nesse real se vai projectar uma dimensão de sonho e de potenciais transformações que se desejam. Quase que se poderá afirmar que é neste conflito que se encontra a matéria que impele a criação poética. Note-se igualmente, a este propósito, o papel da temporalidade, relevante neste processo de construção/reflexão, já que o livro integra textos datados com um intervalo de mais de vinte anos: os mais antigos são de 1984 e os mais recentes do ano de publicação do volume, 2006. Sem se pretender aprofundar esta situação, parece no entanto nítido que as inquietações apontadas percorrem uma “linha da vida” do sujeito criador, projectando-se, umas vezes de forma mais simbólica outras numa visão mais na linguagem poética, juntando assim vida e escrita.

Em termos técnico-compósitos, poderemos associar dois tipos de discurso às duas facetas descritas. Assim, no plano expressivo, nota-se o uso frequente da frase exclamativa que nos remete para essa dimensão mais interiorizada, em textos em que o sujeito poético assume de forma aberta a sua individualidade e certos paradoxos que marcam a sua existência: “Mandam-me embora, logo a mim! Eu, que sou africano de corpo e alma” (do poema “O dilema da hipocrisia racista”); “Que condição esta de ser o que sou…! (do poema “O Mestiço”).

Por outro lado, à atitude de confrontação e de questionamento sobre o real exterior irá associar-se, de forma mais evidente, a frase interrogativa. Nesta categoria temos textos em que o eu poético se institui, ainda na primeira pessoa, como elemento interpelante, dirigindo-se a um tu colectivo ou individual, mas também outros poemas em que se dá lugar a uma voz fortemente inquisitiva do próprio sujeito. Inserem-se aqui, por exemplo, os textos “Mulher africana”, sobre a figura feminina ou “Desumanidades convencionais”, “Genealogia humana” e “Perspectivas”. Estes dois últimos textos assumem, de maneira explícita, a atitude de interpelação que se tem vindo a referir, forma esta que se consubstancia no recurso frequente a elementos lexicais interrogativos, como Perguntarei/ como compreender/ como interrogar/ Onde estará a saída/ Porquê odiar/ porque rejeitar, citando expressões que surgem em diferentes poemas.

Estes aspectos vão remeter-nos para outra característica que torna singular este livro. Na verdade, ao questionar tão fortemente o real e ao procurar respostas concretas para algumas perguntas que são colocadas, alguns poemas que apontam para a função metalinguística da palavra, na medida em que se agarra em determinados conceitos que são elementos-chave no discurso que o livro vai construindo, procurando clarificar esses conceitos.

Isso acontece em poemas como “Exercício sobre a moçambicanidade” ou “Ser mestiço é”, cujos títulos anunciam desde logo a natureza definitória e explicativa destes textos, mas ainda está presente em “Dança ancestral da alma”, “L’enigme”/”O enigma” ou “Mestiçagem” entre outros que poderíamos referir, já que esta constitui uma pulsão criativa com um peso marcante nestes textos. O poema breve “Ser mestiço é…” representa bem o cruzamento da atitude de questionamento e de procura de uma identidade:

Ser mestiço é…

Ter a liberdade de escolher aquilo que
Se quer…?
Ter a liberdade de escolher aquilo que
Se quer ganhar?
Ter a liberdade de escolher aquilo que
Se quer perder?

A estrutura anafórica deste e de vários poemas contribui também para acentuar estas linhas de força centrais: de facto, é através da repetição cadenciada de certas expressões ou mesmo de frase completas, quase que em estilo de refrão, que certas “utopia” – para utilizarmos um termo que surge em vários textos – se posicionam de forma mais nítida perante os olhos do leitor.

Entre essas utopias contam-se o desejo de uma harmonia cósmica que assume diversas amplitudes: em “Junho moçambicano” expressa-se o desejo de unidade e paz entre os moçambicanos; em “Sonho ancestral” essa utopia alarga-se ao continente africano e em “Sonho de um futuro que não chegou”, atinge todos os povos da terra. E é na palavra sonho que, finalmente, se reúne e se perspectiva o trilho que o livro desvenda. Mas convém sublinhar que não estamos apenas localizados na mera retórica do discurso onírico, já que, como se disse no início, o percurso pessoal do Delmar Gonçalves tem procurado na sua actuação cívica concretizar alguns dos sonhos que partilha com o leitor neste seu livro. Neste sentido, o poema que encerra o volume transmite a tensão que, afinal, faz o Delmar prosseguir a sua caminhada – na escrita e na vida.

Entre o sonho e a realidade

Sonho
Sonho permanentemente
Desesperadamente
Diariamente
Utopicamente
Mas vivo na realidade
Talvez se tivesse nascido
Noutras épocas e noutros tempos
Tivesse conhecido Gandhi e King
Luthuli e Mandela
Trocasse ideais,
Partilhasse ideais,
Fosse um herói de revoluções,
Concretizasse o sonho de muitos homens
E fizesse feliz a “raça” humana.

Por tudo isto, quero finalmente dizer ao Delmar que não abdique de sonhar pois, recuperando aqui dois poetas da utopia, é preciso não esquecer que “Pelo sonho é que vamos” (Sebastião Gama) e que “O sonho comanda a vida” (António Gedeão).


Glória Bastos
(Escritora, Investigadora e Professora da Universidade Aberta de Lisboa)
Lisboa, Janeiro de 2007

terça-feira, 29 de abril de 2008

UM POETA NO EXÍLIO




Se há, entre os autores africanos a viverem fora de África, alguém cuja voz poderá e deverá classificar-se como a mais genuinamente africana de todas, essa voz é a de Delmar Maia Gonçalves. No seu caso não só a mais genuinamente africana como, também, a mais genuinamente moçambicana que se ergue no exílio. E uso este termo porquanto, mau grado a sua formação sócio-cultural europeia, ele é e será sempre um escritor e poeta exilado.
É verdade que, como homem, Delmar denota o modo de ser português herdado do tempo colonial, ainda não distante de todo, que a sua marca, a sua sombra, se pudessem ou houvessem já, de todo, desvanecido. E até porque é em Portugal que vive, trabalha, cumpre seu dia a dia como qualquer cidadão português entre os demais – independentemente do que o bilhete de identidade registe em termos de nacionalidade. Mas quando o poeta acontece, é África, é Moçambique, o que de facto lá está. Os dois belíssimos livros – “Moçambique Novo: o Enigma” e “Moçambiquizando” – comprovaram-no à saciedade.
Todavia, e a par dessa avassaladora e apaixonada entrega à África que o viu nascer e lhe moldou a infância e a adolescência e que lhe está no sangue e na carne e na alma, há em Delmar Gonçalves um tocante e comovente volver de olhos e abrir de braços à Humanidade no seu todo – os Homens nos seus sonhos, nos seus dramas, na sua fome de justiça e paz, nos seus desesperos, no seu crer. Essa voz universal que a poesia contém e que está bem patente nos seus versos, no seu pensamento – não obstante a sua (ainda) marcada juventude. Não há dúvida: muitas vezes o envelhecimento da alma ocorre muito antes, afinal, que as marcas do tempo aconteçam no corpo. Neste jovem porta moçambicano no exílio, é isso o que se verifica.
Ao lermos os seus poemas, sobretudo os mais recentes, percebe-se de uma forma clara e num repente que nos empolga, que Delmar Maia Gonçalves, ao mesmo tempo que se irá tornando num andarilho de países e povos, se irá cada vez mais transformando num mensageiro dos sonhos e das preocupações do Homem no seu todo, independentemente da sua cor, da sua língua, do seu sítio. E isto sem nunca deixar de ser o que, acima de tudo, é: a voz mais genuinamente africana dos poetas moçambicanos no exílio – como, no seu caso, as contingências da vida dele fez.

GUILHERME DE MELO
(Escritor, Poeta e Jornalista)

Lisboa, Outubro de 2006