quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"MESTIÇO DE CORPO INTEIRO" por VALTER PEREIRA


O título “Mestiço de corpo inteiro” acaba por designar o texto de forma metonímica. Encerra duas funções, por um lado circunscreve, ou seja delimita, mas torna-se um acto de criação, estabelecendo expectativas num primeiro contacto com o leitor. O título encerra também uma outra dimensão referindo-se ao relevo semântico e ao peso sócio-cultural que pode assumir em determinadas circunstâncias. Conhecendo o percurso pessoal do poeta Delmar Gonçalves – não esquecendo as articulações fortes que a obra e o seu autor podem estabelecer – este relevo semântico e esta dimensão sócio-cultural têm um interesse especial, remetendo-nos para um sintagma que visa a individualização do sujeito que se auto-define, iniciando e anunciando logo a partir do título, um percurso de desvendamento de si.
Este percurso de descoberta é um processo dinâmico, na medida em que se vai concretizar e alimentar a partir da dialéctica que se estabelece entre a construção da identidade do sujeito, marcada por uma complexidade, e as leituras que o sujeito vai fazendo do real exterior. O poeta oscila entre uma dimensão mais intimista e a interrogação sobre o mundo, e assim estabelece uma tensão interior, com o íntimo do sujeito, e o exterior, com o mundo que o rodeia.
O sujeito procura edificar uma imagem de si mesmo, onde se cruzam diferentes vectores, angústias e paradoxos. Esta dimensão atinge a sua mais completa expressão no poema “ E eu sou eu” (Aqui estou eu/Mestiço de negro e branco/Severo e brando/Obstinado e ocioso/ Modesto e orgulhoso), mas também os poemas “Busca Incessante”, “Mestiço e Africano”, “O meu Eu” revelam os conflitos mais íntimos do sujeito.
O real exterior é fruto de múltiplas insatisfações, cruzando-se directamente com a dimensão anterior mas que se prolongam num ideal de sociedade e nesse real vai projectar-se uma dimensão de sonho e de potenciais transformações que se anseiam. É nesta relação conflituosa que se encontra a matéria que impele a criação poética. Neste propósito o papel da temporalidade é relevante neste processo de construção/reflexão. As inquietações apontadas pelo sujeito poético percorrem uma linha da vida projectando-se umas vezes de forma mais simbólica outras numa visão mais crua, na linguagem poética, juntando assim vida e escrita.
Em termos técnico-compósitos, podemos associar dois tipos de discurso. No plano expressivo, nota-se o uso frequente da frase exclamativa que nos remete para uma dimensão mais interiorizada, em textos em que o sujeito poético assume de forma aberta a sua individualidade e certos paradoxos que marcam a sua existência: “Mandam-me embora, logo a mim! Eu que sou africano de corpo e alma.” “Que condição esta de ser o que sou!”
Por outro lado, à atitude de confrontação e questionamento sobre o real exterior irá associar-se de forma mais evidente com a frase interrogativa. Nesta perspectiva surgem textos em que o eu poético se institui, ainda na primeira pessoa, como elemento interpelante, dirigindo-se a um tu colectivo ou individual, mas também poemas em que se dá lugar a uma voz indefinida que interpela o real nesta sua indagação, com a voz fortemente inquisitiva do próprio sujeito “Mulher africana”, “Desumanidades convencionais”. Os poemas “Perspectivas” e “Genealogia humana” assumem a atitude de interpelação que se consubstancia no recurso frequente a elementos lexicais interrogativos “Perguntarei/Onde estará a saída/Porquê rejeitar?”.
O sujeito poético ao questionar tão fortemente o real e ao procurar respostas para algumas perguntas que são colocadas, alguns poemas vão assumir-se como metatextos, ou seja, poemas que apontam para uma função metalinguística da palavra, na medida em que se agarra a determinados conceitos que são elementos-chave no discurso do poeta, procurando clarificar esses conceitos. Isto acontece em poemas como “Mestiçagem”, “O enigma” constituindo uma pulsão criativa com um peso marcante nestes textos. O poema “ Ser mestiço é” representa bem o cruzamento da atitude de questionamento e de procura de uma identidade.
A estrutura anafórica é recorrente e contribui para acentuar estas linhas de força centrais. Através da repetição cadenciada de certas expressões ou mesmo frases completas, quase que em estilo de refrão, que certas “utopias” se posicionam de forma mais nítida perante o leitor.
Entre essas utopias contam-se o desejo de uma harmonia cósmica que assume diversas amplitudes: “Junho moçambicano” expressa o desejo de unidade e paz entre moçambicanos; em “Sonho ancestral” essa utopia alarga-se ao continente africano e atingindo todos os povos da terra.
O percurso pessoal de Delmar Gonçalves tem procurado na sua actuação cívica concretizar alguns dos sonhos que partilha com o leitor e não somente na mera retórica do discurso onírico. O poeta transforma-se num mensageiro dos sonhos e das preocupações do Homem no seu todo, independentemente da sua cor, língua ou sítio.

Valter Manuel Fernandes Pereira
Mestrado de Estudos Portugueses
Literaturas de Língua Portuguesa