“As memórias querem-se nessa periferia
onde as podemos controlar; passamos bem sem
os sobressaltos da sua rebeldia”.
João P. Borges Coelho, As Visitas do Dr. Valdez
Quantas vezes pensamos no retorno, no passado, e permanecemos quietos, mudos, perante um silêncio colado aos dias que passam, quotidianamente, pelo calendário das nossas vidas e afectos? Quantos rostos e vozes serão necessários para construirmos uma imagem possível e verdadeira deste Portugal pós-colonial?
Percorro exaustivamente estas últimas questões, no percurso do meu trabalho de investigação, que desenvolvo no âmbito do meu pós-doutoramento, sob o título “African Mozambican Immigrants in the former ‘motherland’: The portrait of a postcolonial Portugal”. Indubitavelmente, os estudos pós-coloniais de expressão/língua portuguesa têm auferido de uma enorme riqueza e profundidade através das análises críticas da literatura pós-descolonização. Olhar a sociedade pós-25 de Abril pela lente literária tem sido para muitos estudiosos e pensadores o quanto basta para um entendimento, supostamente justo e equilibrado sobre o que é hoje o Portugal que surge após a guerra colonial, a derrocada do Estado Novo e a emergência da democracia. Contudo, a resposta não reside, somente, penso eu, nos registos literários, ficcionais e poéticos dos sujeitos, alguns deles observadores-participantes, que estiveram, viveram e experienciaram o modo de ser português em África. A observação humana dos outros, não na sua formulação e conceptualização estereotipada ou mesmo estigmatizada, necessita de uma descida aos universos do íntimo, do subjectivo, das memórias, das narrativas de vida e de identidade, e das trajectórias vivenciais de cada um. Não quero, aqui, ignorar os estudos já realizados por Miguel Vale de Almeida, Boaventura Sousa Santos, Cláudia Castelo, Manuela Ribeiro Sanches, entre outros. Mas falta esta outra óptica mais quotidiana, discreta mas sôfrega das vozes do dia-a-dia.
Como pensar este pós-colonialismo, que chamarei, do quotidiano? O que é que este nos diz daqueles que oriundos das antigas colónias portuguesas, criaram como faróis das suas vidas a integração social, profissional e familiar? O que é que estas pessoas sentem, e que percepções nos oferecem sobre si e sobre o retrato da pós-colonialidade portuguesa? Ao longo da minha pesquisa sobre ‘imigrantes’ afro-moçambicanos em Portugal que, outrora, eram designados na hierarquia colonialista portuguesa como assimilados e que, após a independência política em Moçambique (25 de Junho, 1975), optaram por prosseguir com as suas vidas no contexto português da descolonização, tenho compilado registos humanos e narrativos que, gritantemente, mostram a persistência de um sentimento de exílio pátrio e identitário. De facto, ao acompanhar estes moçambicanos nas suas vidas e memórias, observo que a identidade não é mais do que uma luta pela sobrevivência do eu-individual e do eu com uma identificação mais alargada ao espaço familiar. Para muitos destes sujeitos, ser português ou moçambicano representa uma vivência de limbo, eivada de ambiguidades históricas, culturais e sociais. Relembre-se que, na praxis colonial portuguesa, o assimilado não era classificado como indígena, mas também não detinha os plenos direitos de cidadania de um(a) português(a) nesta arquitectura social. O limbo, a ambiguidade assombram estas vivências, ainda hoje, nas suas vidas. Veja-se, por exemplo, este desassossego identitário na voz poética de Delmar Gonçalves, moçambicano residente em Portugal:
Mestiço
(poema dedicado a Noémia de Sousa e
José Craveirinha)
Que condição
esta de ser o
que sou…!
Para ser africano pleno
tenho de admitir ser
o que não sou
Para ser europeu de corpo
inteiro
tenho de fingir e
procurar ser o que
não sou.
Que dilema este
de ser
o que sou
sendo o que não sou.
(Gonçalves, 2006: 59)
Recordo, na linha da anterior reflexão poética sobre o eu fragmentado e disseminado, um encontro com uma senhora moçambicana que me dizia: “os próprios moçambicanos em Portugal, não vivem como moçambicanos, vivem como portugueses; …eles não se identificam como portugueses, têm uma parte em que gostam das coisas em Portugal, como seja de comer, da vida social e das condições de viver uma vida boa que, possivelmente, em Moçambique muitos perderam. (…) a nível dos valores moçambicanos, de identidade, não há uma identificação com Moçambique, as pessoas não se identificam com os problemas que existem em Moçambique … estão sem identidade”(Khan, 2004: 204). Este sujeito ambíguo projecta nas suas referências culturais e nos seus desabafos narrativos um titubeante trabalho de memória, onde o diálogo entre passado e presente se apresenta como fechado, trancado por uma necessidade de olhar para um futuro vigiado por questões relacionadas com a estabilidade familiar e profissional. Para muitos dos entrevistados a memória é um tempo que passou, o lugar do não-dito, dos murmúrios que, ironicamente, se consolida, também, com a preguiça que a sociedade portuguesa demonstra ao empurrar para as margens a presença destes sujeitos no espaço do tecido nacional e pátrio pós-colonial português. De facto, partindo destas observações urge-me provocar a condição pós-colonial portuguesa, ao questionar-me se esta não se encontra, ainda, debruçada sobre um luto adiado do seu passado colonial, da sua insistência em olhar o pretérito de Portugal em África como forma de resistir a uma cronologia histórica. No meu entender, o rosto da pós-colonialidade portuguesa deve, isso sim, concentrar-se em torno de um avanço, este concretizando-se nas mentes e acções dos actores sociais. Consolido esta conclusão, atentando nas palavras de Isabel Allegro de Magalhães quando observa: “no Portugal pós-25 de Abril, tanto são as margens sociais do tecido nacional, conformadas pelos cidadãos de quem não se ouve a voz … como por aqueles que passaram a fazer parte integrante do tecido nacional quando deixaram as antigas colónias (ou territórios sob a administração portuguesa), hoje países autónomos e que por razões económicas vieram para o país ex-colonizador” (Magalhães, 2001: 310).
Artigo originalmente publicado na revista Jogos Sem Fronteiras, ed. Antipáticas 2008