domingo, 29 de março de 2009


ORIUNDO de Moçambique, onde nasceu nos últimos anos do período colonial-fascista português (1969, ainda com António Salazar vivo, mas já taralhoco e fora do Governo), Delmar Maia Goçalves — DMG — passa a infância e a parte principal da adolescência no Quelimane natal, e chega à Europa e ao nosso país com a idade de 16 anos. Este facto biográfico de DMG possibilita-nos, desde logo, aferir de uma sua ligação ou vínculo muito estreito às raízes moçambicanas, onde foi gerado e de onde proveio, e a uma ambiência sui generis, que ultrapassa de longe a chamada cor local. A partir deste último referente — com todos os ingredientes do foro geográfico e uma nomenclatura, quiçá, típica, onde se englobam a fauna e a flora africanas e as figuras sublinháveis do habitat —, o Autor tem atingido outros pressupostos, como sejam as lutas de solidariedade internacionais, a visão ecuménica do mundo, a dádiva pelo outro e a relação amorosa entre homem e mulher que, no paradigma vertente, se corporiza melhor entre branco e negra, ou vice-versa, ou acerca do posicionamento sociológico ou arquetipal do mulato. Em minha opinião, a rota do mulato encontra-se mais perto do branco que do negro.
"Afrozambeziando ninfas e deusas", este livro de agora, assume-se, por seu turno, como um conjunto de textos poéticos onde o principal fulcro motivacional são os aspectos passionais do Amor, tudo o que diga respeito a Eros, tudo longe de Platão, e utilizando uma linguagem que privilegia o denotativo tout court: não são de sua índole ou em face de um formato psicológico ou cultural as buscas constitutivas de um possível conotativo. Aliás, e pelo que conhecemos de DMG, o seu discurso desenvolve-se sempre na esteira de um sonho de olhos abertos, idealiza e corporiza o que acha pertinente sonhar; não pratica o automatismo psíquico nem envereda por caminhos da experimentação frásica. Com efeito, orienta-se em função do húmus onde nasceu, bem como seguindo as pisadas do tipo de leituras que, decerto, teve no seu torrão moçambicano e pelas quais foi formado. Leituras (sublinhe-se) acompanhadas, não admira, pelo feitiço dos contos orais em que a África, então, dita portuguesa, era fértil.
Dentro desta perspectiva, os dois amantes heterossexuais movimen­tam-se sempre num universo onde o "Teu corpo / É como um / Rio sem margens (...)", e tudo se move ao redor "de um amor / que quer ser eterno".
No que concerne à tónica do corpo aberto ao fulgor físico e à liberdade de gestos, esse individualizador é adjectivado como "corpo esbelto" ou cunhado com a etiqueta de "o teu corpo que me pertence". Pode, outrossim, atingir um diapasão mais recôndito: "Teu corpo / um convite velado". Entretanto, no poema "Mulher XXIII", depara-se com outra definição, ou seja, aparece o "Teu corpo" (como) "um território sagrado". E, no texto "Mulher IV", está instaurada a dúvida metódica, digamos assim: não se sabe em virtude de que predicado o Autor ama. Se tal se verifica em face de "Será o teu olhar, Será a tua voz / Será o teu corpo / Será o teu espírito?" Mais ainda: no poema "Mulher XIV", DMG aspira, suspira por "suaves carícias", "para se embrenhar no teu corpo..."
Em definitivo, na composição "Femme XVII — Éternité interrompue", descobrimos, intensos e desesperados,
Deux corps unis Dans un seul" (...).
Não devemos olvidar o que é, porventura, o motor mais eficaz do mundo: tudo vai e vem, tudo parte e se renova ou se extingue na volumetria do corpo. Ele, o único, que é genético e, simultaneamente, um painel de socialização. O corpo acaba por ser o que a sociedade quiser que seja; é depositário de muitas e contrastadas posturas e visões. Somos, sem rebuço, o que comemos, e respiramos, o que sentimos e, mesmo, por que não?, o que amamos. Fingidos ou desgraçados, eufóri­cos ou mal tidos. Malditos. Sanguíneos, até à medula. O Amor engran­dece-nos ou destrói-nos; faz de nós marionetas ou praticantes sublimes.
DMG resolve a vida com base na ambiência transfigurada e transformista de Eros e, embora a sua erótica (dele, Autor) não assuma jamais um tono agressivo, é inquestionável que constitui uma motivação única no seu actual trajecto.
Fora desta emblemática corporal, aparecem algumas composições, poucas, onde os motivos divergem, nomeadamente aqueles onde são mais notórias as matrizes sociais, uma estilística pragmática que terá a ver com os anseios dos últimos anos 40 portugueses, melhor dizendo, do Neo-realismo, o tom directo dos poetas conimbricenses do "Novo Cancioneiro"... Mas vazado para as plagas muito telúricas e carenciadas de África, onde as injustiças campeiam.
Neste contexto, retive "A História de Maria Preta Relembrada", as composições dedicadas à avó Vitória e à avó Rita, o cântico ao futuro que ressalta de "Mulher Africana I", e aqui, para lá do desamor e das humilhações, há um apelo ao sorriso de galvanização.
Finalmente, refiro o poema "Criança, Mulher e Filha", no qual DMG constrói um clima ternurento e enternecedor, dedicado a sua filha (Luna). Nome, esse, que, em si mesmo, sans doute, já é um convite escancarado à poesia...

Fernando Grade
(Poeta, Escritor, Artista Plástico, Crítico de Arte e Crítico de Literatura)
Estoril e Oeiras, Primavera de 2006

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