Quando se fala de mestiçagem, temos a tendência para filtrar o conceito associando-o a uma mistura de duas raças, mas, em Delmar, este processo é mais complexo dado as suas fontes culturais originarem de diversos pontos geográficos e é por isso que associo a mestiçagem, neste autor, a um processo de (des)construção transcultural. Se as diversas influências culturais lhe trouxeram enriquecimento e um sentimento de libertação identitária, considerando-se um “cidadão do mundo”, também esta diversidade provocou uma espécie de caos fragmentado, uma identidade puzzle irresolúvel, que resultou numa (re)afirmação de uma identidade única, que o liga a um ponto geográfico específico, a moçambicanidade.
Quem conhece a obra de Delmar, facilmente se apercebe das dicotomias identitárias, que surgem tanto pela mestiçagem de africano e europeu, como se pode confirmar em E eu sou eu “Aqui estou eu/ mestiço de negro e branco” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006) e O Inevitável “Não tenho culpa de ter nascido mulato;/ não tenho culpa que a minha mãe negra/ tenha amado um branco” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006); como pelas influências culturais absorvidas na diáspora “Repousam/ em mim/ velhos Imbondeiros/ comigo sentado/ à beira de uma Oliveira” (Entre dois rios com margens, 2013); e, também, como consequência dos processos de transculturação trazidos pela globalização, que contrastam com as suas raízes culturais ancestrais africanas. Por outro lado, também a sua vertente africana sofreu um processo de hibridização cultural, próprio da Zambézia, onde, além da diversidade cultural das diversas etnias africanas, se verificam influências culturais asiáticas, europeias e árabes, quer através do cinema e da culinária, quer pelas comunidades aí existentes que, desde sempre, se miscigenaram com os locais, provocando interessantes fenómenos de transferências culturais. Delmar, cuja avó resultava já de um casamento entre africana e indiano, tinha familiares tanto católicos, como muçulmanos, tanto africanos, como europeus e goeses. São estas influências que dão força a um sentimento de libertação identitária, considerando-se o autor um “cidadão do mundo” em poemas como Mestiço de Corpo Inteiro “Sou mestiço sim/mestiço de corpo inteiro/ mestiço no espírito e na carne/ mestiço das Áfricas/ das Américas/ da Ásia/ da Oceânia/ mestiço das Europas/ mestiço do mundo, mestiço do mundo inteiro!” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006), A Universalidade do Crente “Sou Cristão/ Vou a Roma/ ou Belém/ vou à Igreja/ Ajoelho-me e oro/ Leio a Bíblia Sagrada/ Invoco Jesus Cristo/ Rezo a Deus/ Cumpro meu dever/ Retorno.// Sou Muçulmano/ Vou a Meca ou Medina/ vou à Mesquita/ Leio o Alcorão/ Oro/ Invoco Muahmmad/ Rezo a Allah/ Cumpro meu dever/ Retorno.// Sou Judeu/ Vou a Telavive ou Jerusalém/ vou à Sinagoga/ Leio a Torá/ Oro/ Faço a Tahanum/ Invoco David e Salomão/ Rezo a Adonai/ Cumpro meu dever/ Retorno.// Sou Hindú/ Vou a Benares ou ao Ganges/ vou ao Templo/ Leio o Gita/ Medito e oro/ Purifico-me/ Invoco Krishna/ Rezo a Om e Brahma/ Cumpro meu dever/ Retorno.//Sou Homem Global/ Crente de Deus/ e estou/ em sua busca” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006), Mestiçagem “Somos resultado de uma adição/ Quando subtraímos esquecemo-nos/ que antes houve adição (…) Feitas as contas/ a adição só enriquece/ não empobrece” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006); Arco-Íris Humano “Com tenra idade/ já me apercebera/ da beleza do mundo colorido./ Tentaram vendar-me os olhos para ver só a preto e branco./ Antecipadamente decidi fechar os olhos/ e viajar…/ Na viagem descobri/ a beleza do arco-íris./ Afinal o mundo não é/ só a preto e branco.” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006); O meu Eu “O meu Eu/ são vários Eus/ por isso/ não falo de mim (…) Mas a realidade/ do meu Eu/ é tão minha/ como o é/ dos meus Eus” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006) e O Fragmento (Eu) “Os fragmentos/ de que sou/ composto/ reclamam/ um pedaço que seja/ da esfera do caos!” (Entre dois rios com margens, 2013). Por outro lado, é também a dicotomia negro/branco, uma espécie de entre-lugar abstracto dos mestiços, que se revela ao mesmo tempo próximo e distante de duas (ou mais) culturas, nunca se inscrevendo inteiramente em qualquer uma delas, por duas razões: primeiro, porque não quer renegar os seus antepassados; depois, porque ambos os lados o aproximam e repelem, o que nos remete para a relação de abstracção de Georg Simmel “esta combinação de proximidade e de distância, que confere ao estrangeiro o seu carácter de objectividade, encontra a sua expressão prática na natureza mais abstracta da relação que se pode ter com ele (…) entre proximidade e distância, surge uma tensão particular a partir do momento em que a consciência de que só o que é totalmente geral é comum faz sobressair o que não é comum”. Apesar de este autor se referir ao “estrangeiro”, eu penso que os mestiços também se podem inscrever nesta descrição de abstracção e, ao mesmo tempo, também no sentimento de estranheza, do mesmo autor, porque nunca são inteiramente aceites como pertencendo a uma comunidade e são, por isso, estranhos e ambíguos. Esta ambiguidade nunca é bem aceite porque nos desorienta em sociedade; a ambiguidade não está perto nem longe, não é má nem boa, é estranha. Essa relação de abstracção/estranheza está patente em diversos poemas de Delmar, numa dinâmica antonímica rítmica, pulsante como os batuques africanos, conforme se pode atestar em Zé Pecado e o dueto Preto e Branco “Zé Pecado/ foi para o lado dos negros/ e levou um empurrão/ com um clamor de vozes:/ - Sai daqui seu misto sem bandeira (…) Com lágrimas vertendo/ foi para o lado dos brancos onde ouviu um eco de vozes/ clamando: - Sai daqui seu preto, sai daqui seu preto!” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006); Irmão Branco, Irmão Negro “Quando tu/ irmão branco/ de coração umbiguista/ me procuras insultar/ chamando-me preto (…) Quanto a ti/ irmão negro/ de coração libertino/ do tamanho da África/ quando me procuras/ ofender/ chamando-me/ misto sem bandeira (…) Afinal…/ não são sempre/ aqueles que mais amamos/ que nos maltratam/ e fazem sofrer (?)”(Mestiço de corpo inteiro, 2006).
Todas estas influências culturais foram importantes para a construção de uma consciência universalista, mas, por outro lado, também fomentaram uma fragmentação identitária resultante principalmente da divisão racial branco/negro. Como mestiço, foi empurrado para um entre-lugar essencialista, que fica entre duas raças, duas culturas com fronteiras. Daí o título do seu livro “Entre dois rios com margens”, fazendo, numa primeira interpretação, referência ao Rio do Bons Sinais, em Quelimane, cidade onde nasceu, e ao Rio Tejo, em Lisboa, cidade onde vive. Mas numa análise mais profunda do sentimento mestiço e da sua relação do autor com a diáspora, apercebemo-nos que é uma metáfora da dicotomia rácico-cultural negro/branco, moçambicano/português, africano/europeu, moçambicano no país natal/moçambicano na diáspora. Esta dualidade rivalizada colocava-o nesse entre-lugar ambíguo e desorientador. Creio que foi por este motivo que se impôs um sentimento de pertença a Moçambique, a uma colectividade moçambicana composta por negros, brancos, mestiços, chineses, indianos, árabes, entre outros, conforme o poeta afirma no poema Moçambique Moçambicano “Na minha Pátria/ não há pretos nem brancos/ há Moçambicanos.// Na minha Pátria/ não há mestiços/ há Moçambicanos.// E Moçambicano/ é aquele que/ sente o pulsar da/ pátria,/ Moçambicano/ é aquele que a vive.” (Mestiço de corpo inteiro, 2006). É de citar também, que no III Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora, realizado em 2010, Delmar afirma “O escritor moçambicano na diáspora também é um escritor moçambicano”. O tema que apresentou nesse encontro teve a finalidade de confrontar questões relacionadas com o desprezo aos intelectuais que vivem na diáspora, por parte daqueles que vivem em Moçambique, que muitas vezes os “descartam”, afirmando que os escritores que vivem em Portugal são portugueses ou que os mestiços não são moçambicanos. O sentimento de pertença moçambicano está, no entanto, para além da raça ou do lugar onde vivem, está numa ligação umbilical a um ponto geográfico específico que coincide com o local de nascimento, local esse onde bebeu as primeiras influências culturais, que deixaram marcas profundas no nível informal e inconsciente daquele que se sente moçambicano. A prova disso é a poesia dos autores moçambicanos na diáspora. E neste caso, do Delmar, cuja poesia é o meu objecto de estudo. Antes de mais, é de notar que ele faz uma série de referências a Moçambique, ao povo moçambicano e a diversos pontos geográficos específicos no país (como Chokwé, Nicoadala, Quelimane, Luabo, Homoíne, Licuári, Namacata, Gorongosa, Muxunguè, entre outros), que estão frequentemente (mas nem sempre) relacionados com a guerra civil (na sua poesia mais antiga – vd. Moçambique Novo, o Enigma, 2005 e Moçambiquizando, 2005) ou com os problemas actuais do país (na sua poesia mais recente), em que aborda questões como o racismo, a corrupção, a miséria, os confrontos mais recentes entre a RENAMO e a FRELIMO, de onde surge um sentimento de “dor do mundo”, uma espécie de “esperança magoada”, em que ele, como se fosse o solo da sua pátria, carrega em si todo o sofrimento do povo moçambicano e, ao mesmo tempo, de todos os povos do mundo. Estas referências podemos encontrar em poemas como Lá vai o General “Lá vai/ o General/ O General sem rosto/ mas perfeito/ sempre perfeito/ apesar de tudo/ não sente a falta/ dos cifrões/ não usa patentes/ não usa coldres/ não usa arma/ de pão não tem falta/ usa fato/ usa balalaica/ tem motorista!/ Pois…/ Lá vai o General/ O General sem rosto/ sem consciência/ sem remorsos!/ “Comandante do barco”/ rico embora/ mas profundamente “Nacionalista”!/ Não nacionalizou/ ele o dinheiro?” (Entre dois rios com margens, 2013) e Em Moçambique “Em Moçambique/ ainda há Corvos/ de mau agoiro/ com sorrisos de Hienas/ e uma Voraz apetite de Abutres” , em que aborda a questão da corrupção; depois, temos Luabo “Em Luabo/ plantaram-se tumbas/ no lugar/ do paraíso açucarado” (Entre dois rios com margens, 2013) e Homoíne “Em Homoíne/ destilam-se lágrimas/ no vapor/ do tempo/ das balas” (Entre dois rios com margens, 2013), que fazem alusão aos confrontos político-militares mais recentes; também é de referir Pudessem “Pudessem os bons compreender/ que o seu silêncio é também/ o suicídio das almas vindouras (…) Pudessem os bons motivar-se/ para a acção contra a ditadura da passividade/ Pudessem os bons gritar/ bem alto – Basta!” (Entre dois rios com margens, 2013), que nos remete para a célebre frase de Einstein “O mundo é perigoso não por causa daqueles que fazem o mal, mas por causa daqueles que vêem e deixam o mal ser feito”; e, finalmente, Escrita “Escrevo para exorcizar a dor (…) a dor do mundo!/ Não nasci por acaso” (Entre dois rios com margens, 2013), Dor “Minha dor/ é o somatório/ de todas as dores.// Sinto a intensidade/ da dor/ na pedra/ do meu vazio” e África “Já que/ o velho Imbomdeiro/ adormeceu ressequido/ em quantas partes/ dividiremos/ o Pão da nossa Fome?” (Entre dois rios com margens, 2013), em que é bem explícito o sentimento de “dor do mundo” do poeta.
Por outro lado, são também evidentes as influências da Negritude na construção da sua poesia e estão profundamente enraizadas na sua identidade moçambicana. Antes de mais, gostaria de referir uma citação de Mário Pinto de Andrade sobre a Negritude em Francisco José Tenreiro “a negritude põe de lado facções políticas e patriotismos (…) e repousa numa consciência em vias de renascimento, (…) é estruturalmente claro e directo nas suas falas, amargo e duro por vezes – a dureza necessária para que os ouvidos de todos a possam perceber plena”. Essa dureza, essas falas directas e claras e, ao mesmo tempo, amargas não só estão presentes na poesia do Delmar como são marcas estruturais muito importantes na sua poesia. Vejamos o que diz Amadeu Ferreira no prefácio a Entre dois rios com margens, 2013 “Apresenta-nos Delmar Maia Gonçalves um poemário com dezenas de curtas explosões, poemas que apenas duram o tempo de um clarão. As palavras a condizer com essa concentração luminosa, são um grito que oscila entre esperança e raiva, dor e denúncia, vida e morte, pão e fome, o bem e o mal, o paraíso e o inferno, num dualismo que atravessa toda a obra (…) Esta não é pois uma poesia neutra ou fora do mundo, bem ao invés, ergue-se como um espinho espetado no poeta, em toda ela perpassando denúncias sem fim”. A força semântica dos substantivos “silêncio”, “morte”, “raiva”, “dor”, “denúncia”, “fome”, leva-nos a concluir que o autor imprime na sua poesia essa dureza, essa amargura de que Mário Pinto de Andrade falou. Evidentemente que estas características não são por si só marcas da Negritude, mas sim, quando em conjunto com a tese sartreana sobre a negritude, de onde Albert Franklin extraiu os seguintes pontos de articulação: racismo anti-racista (patente em quase todos os poemas de Delmar sobre a condição do mestiço); sentimento do colectivismo (o sentimento de pertença moçambicano); o ritmo (que está presente na dualidade constante da sua poesia, conferindo-lhe uma similitude ao som dos batuques – “aqui estou eu” tum tum tum “mestiço de negro e branco” tum tum tum “Severo e brando” tum tum “Obstinado e ocioso” tum tum “Modesto e orgulhoso” tum tum “E eu sou eu” tum tum tum); concepção sexual (que encontramos no erotismo revelado em grande parte da sua poesia contida no livro Afrozambeziando Ninfas e Deusas, 2006); comunicação com a natureza (fazendo frequente recurso a elementos da natureza como “imbomdeiros”, “selva”, “hienas”, “lobos”, “corvos”, “rio”, “mar”, “lua”, “crocodilos”, “abutres”, “água”, “terra”, entre outros); culto dos antepassados (tomo como exemplo o poema Sonho Ancestral publicado nos Cadernos Moçambicanos nº1, 2004 ou em Nostalgia Africana, Moçambiquizando, 2006).
É por causa destas características evidentes de negritude, que o colocam em África, e da sua intrínseca ligação a Moçambique (veja-se ainda que no poema Voz das Conchas (Entre dois rios com margens, 2013) em que o poeta acredita que a sua ligação a Moçambique é tão forte que consegue, através de uma concha, fazer a sua voz ouvir-se no seu país, mesmo estando na diáspora) que acredito que Delmar só pode fazer parte da literatura moçambicana e nunca de uma literatura europeia, apesar de ser mestiço e de viver num país europeu. As suas marcas, o seu pensamento e a sua identidade estão de tal forma enraizados no seu país de origem, que se justifica inteiramente a sua (re)afirmação da moçambicanidade.
Vera Novo Fornelos
Junho, 2016
in "Milandos da Diáspora 2016"
Apresentado no IX Encontro de Escritores Moçambicanos na Diáspora - 2016
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