Flávia Ba
Centro de
Estudos Comparatistas – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
No
momento actual o conceito de hibridez é amiúde celebrado sob a forma de
festivais culturais ou eventos ligados às mais diversas manifestações
artísticas. No entanto, urge repensar a condição também amiúde angustiante do
entre-lugar, sobretudo dos indivíduos para os quais o cosmopolitismo,
contrariamente ao que terá afirmado Ulf Hannerz no ensaio «Cosmopolitans and
Locals in a World Culture» (1991), não constitui fruto de uma escolha pessoal
mas antes objecto de circunstâncias pessoais e históricas muito específicas.
Este é o ponto onde Delmar se encontra n’A
Curva do Rio de V.S.Naipaul.
Como afirmou George Lamming
(2000: 20) em Regreso al hogar,
Conversaciones II:
la soberanía de una
literatura depende de la posesión del
texto por toda la sociedad a través del más variado territorio de mediación. El
texto tiene que hacerse familiar y cosa habitual de la conversatión cotidiana.
Los libros solo siguen vivos cuando son comentados en una variedad de
situaciones por personas que roconocen que el libro habla de ellos e pudo haber
originado en ellos.
Depreende-se
das palavras de Lamming que o escritor desempenha a função de mediador, possuindo
a capacidade de transferir a sua vivência para as pessoas que com ele partilham
um mundo diverso e divergente. É esta experiência de mediação que V.S.Naipaul e
Delmar Gonçalves partilham com os seus leitores. Uma mediação orientada pela
também comum vivência diaspórica e consequente experiência do entre-lugar.
Há uma ideia feita, mas em
tudo errada, de que ser-se exilado é sinónimo de afastamento, isolamento, de
separação desesperada do local de origem. Bom seria se essa separação delineada
com uma precisão cirúrgica fosse verdadeira, porque então ao menos ter-se-ia o
consolo de saber que o que ficou para trás é, de certa forma, impensável e
completamente irrecuperável (Said, 1993: 52)
As
palavras de Said ilustram outro ponto de contacto entre as narrativas pessoais
de Naipaul A Curva do Rio (1979) e de
Gonçalves Mestiço de Corpo Inteiro
(2006). Ainda que pertencendo a diferentes enquadramentos formais literários,
as narrativas destes autores desmentem a suposta “precisão cirúrgica” de separação do lugar de
origem, negação contida na vivência pessoal que transparece nas respectivas
narrativas. Em 2001, o Nobel da Literatura V.S. Naipaul afirma o seguinte: “I
will say I am the sum of my books. Each
book intuitively sensed and, in the case of fiction, intuitively worked out,
stands on what has gone before, and grows out of it”. A
experiência de expatriação vivida por Salim em A Curva do Rio coincide com a vivência ambicronotópica de Naipaul
que, nascido em Trinidad, aos dezoito anos se desloca para o Reino Unido e, à
medida que os anos passam, se torna num viajante e revisitante do seu ponto de
origem – as Caraíbas. É precisamente desta revisitação identitária que resulta,
nas palavras do próprio Naipaul, o seu universo literário. Analogamente, Delmar
Gonçalves nasce em Quelimane e desloca-se para Portugal onde partilha a dupla
consciência espelhada em Mestiço de Corpo
Inteiro: “O meu Eu/são vários Eus/por isso/não falo por mim” («O meu Eu»,
2006:41);
Sou mestiço/De corpo
inteiro./Sou mestiço/não porque/ser mestiço/é melhor que ser negro/ou porque é
melhor que ser branco./Sou mestiço/porque sou mesmo mestiço,/porque resulto do
negro e do branco/porque não posso jamais renegar/um pouco que seja dos meus
glóbulos/sanguíneos negróides e caucasóides («Dança Ancestral da Alma», 1998:
29)
Ainda
que substancialmente distintas no tratamento da questão do entre-lugar – do que
poderá denominar-se de ambicronotopia[1] – A Curva do Rio e Mestiço de
Corpo Inteiro contactam analogamente (1) na visão cosmopolita proporcionada
pela experiência de expatriação dos respectivos autores civis; (2) na
centralidade do espaço geográfico que
condiciona fortemente o questionamento identitário; (3) no papel
charneira que Salim e o sujeito de Mestiço
de Corpo Inteiro desempenham enquanto mediadores entre Europa e África.
Neste terceiro ponto de contacto, enquanto em A Curva do Rio a representação cronotópica da Europa e de África é
feita a partir de um permanente fluxo de contaminação histórica que imbrica
espaços e tempos de forma angustiantemente nihilista, em Mestiço de Corpo Inteiro a “curva do rio” – encruzilhada por
excelência – desemboca na assertividade identitária: “Tenho coração e
alma/Negra/E a África/Dança em mim” (1998:21). Por outras palavras: Naipaul
apresenta-nos em A Curva do Rio uma
personagem que vive literal e identitariamente na curva do rio, enquanto Delmar
nos apresenta o dilema da curva mestiça. O sujeito de Delmar encontra no caudal
do rio um caminho que reafirma positiva e humanisticamente a sua condição;
Salim permanece nessa encruzilhada e prossegue viagem; o sujeito de Delmar,
ainda que na inevitável natureza híbrida
“Je suis un noir pour les blancs/Et blanc pour les noirs/Mais je suis métis”
(«L’énigme», 1997), apresenta uma visão construtiva e optimista de um
Moçambique que reclama como seu (cf.
«Exercício sobre a Moçambicanidade», 2006; «Moçambique eternamente berço»,
2001); já Salim descrê de forma assertivamente céptica numa sociedade, num país
pós-colonial figurado no Zaire de Mobutu Sese Seko:
Alguns jornais falavam de
fim do feudalismo, do alvorecer de uma nova era. Mas o que sucedera não tinha
nada de novo. Determinadas pessoas haviam perdido o poder e tinham sido
fisicamente destruídas. Isso em África não era novo; aliás era a mais velha das
leis (A Curva do Rio, 45)
A
condição de deslocação evocada em A Curva
do Rio e em Mestiço de Corpo Inteiro
imprime a ambas as narrativas o que Edward
Said, falando sobre o exílio e a expatriação, caracteriza como fonte “não de aculturação e
adaptação, mas antes de volatilidade e de instabilidade” (Said, 1993: 53). No
caso da narrativa de Naipaul, Salim em África deseja a Europa e na oportunidade
em que se desloca a Londres, rapidamente se ancora em pontos de remissão para a
África que conhece. É nessa situação volátil e instável que Salim, no final da
narrativa, dobra a curva do rio em nova viagem. Já o sujeito de Delmar, também
instável (mas não volátil) na dupla consciência mestiça, anseia pelo regresso
na curva do rio europeu onde se encontra: “Tu uma pérola no Índico/E eu/um
viandante/Encalhado no Atlântico/(…)Como sempre:/Eu sou tu, tu és eu/Não te
esqueças/Moçambique/Voltarei!” («Voltarei», 1995:54). Embora as condições de exílio e de diáspora
apresentem especificidades que as distinguem implicam, como traço comum, uma fonte de instabilidade e volatilidade
caracterizada por laços de lealdade para com os pontos de origem dos indivíduos
e que poderão acicatar, da parte dos sujeitos em condição diaspórica, a
assertividade de pertença identitária à motherland, o que parece ser o caso do
sujeito de Delmar. Já o Salim de Naipaul, o sujeito diaspórico em trânsito na
curva do rio, perde-se no fluxo do rio, sobretudo quando o expropriam dos seus
bens em nome da nacionalização em curso – está claramente em lado nenhum o que
imprime o carácter céptico à narrativa de Naipaul. Ao contrário do sujeito do
poema «Voltarei» (1995), Salim poderá ser considerado uma projecção do
“homeless cosmopolitan” em que Naipaul, segundo o seu biógrafo Bruce King, se
tornou.
Na
medida do que tem vindo a ser referido ao longo desta apresentação, A Curva do Rio e Mestiço de Corpo Inteiro constituem exemplos de literatura em
diáspora. Tal como o próprio conceito de diáspora é viajante por exigir um enquadramento histórico e social
que especifique as diferentes situações em que o movimento diaspórico ocorre,
da mesma forma as narrativas que ora se comparam são narrativas viajantes
feitas por viajantes. Em A Curva do Rio,
a viagem é melancólica perspectivando, nas palavras de Erica Jonhson em «'Provincializing
Europe': The Postcolonial Urban Uncanny in V.S.Naipaul’s A Bend in the River» (2010), uma África onde a fraqueza, a
vulnerabilidade, a ignorância e a arrogância são a dominante, fruto das
impressões de viagem que Naipaul, em 1975, efectuou entre o Rio Congo e
Kinshasa. Em Mestiço de Corpo Inteiro
e no conto O Regresso Adiado de Malfez
Razão Massamo (1996), os respectivos sujeito e protagonista assumem-se como
viandantes na sua condição híbrida e viajantes em processo de retorno às suas
origens. Por este motivo, e tal como afirmado pelo escritor Jorge Viegas no
posfácio a Mestiço de Corpo Inteiro,
“as pontes para ligarem as pessoas que, à partida habitam mundos diferentes,
são sempre de carácter transitório” (Mestiço
de Corpo Inteiro, 2006: 83). Assim, estas pontes de carácter transitório
que também caracterizam os elos que se estabelecem entre as comunidades
diaspóricas e os destinos de acolhimento tornam um Mestiço de Corpo Inteiro num
indivíduo inalienavelmente dispórico nas suas origens. Ou, n’A Curva do Rio. É nessa esquina fluvial
que Naipaul e Delmar poderão ser encontrados.
Gonçalves,
Delmar (2006), Mestiço de Corpo Inteiro,
Lisboa: Minerva
Naipaul,
V.S. (1990), A Curva do Rio, Lisboa:
D.Quixote
Naipaul, V.S. (2002), “Two Worlds”, in PMLA, 3, 479-486
Johnson, Erica (2010) “'Provincializing Europe': The
Postcolonial Urban Uncanny in V.S.Naipaul’s A
Bend in the River» in JNT: Journal of
Narrative Theory, 40.2, 209-230
Lamming, George (2000), Regreso al hogar, Conversaciones II, St. Martin: House of Nehesi
Publishers.
Said,
Edward W. (1993), «Exílio Intelectual: Expatriados e Marginais» in Representações do Intelectual, As palestras
de Reith de 1993, Lisboa, Edições Colibri.
[1] A narrativa de Naipaul problematiza a
experiência de expatriação e o confronto entre dois mundos que Salim
simultaneamente deseja e repudia enquanto que em Mestiço de Corpo Inteiro o sujeito é apresentado como a
problemática da hibridez física – a
mestiçagem – enquanto condição identitária inalienável
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