sábado, 18 de agosto de 2012

"DELMAR MAIA GONÇALVES n´A Curva do Rio-exemplos de literatura em diáspora"por FLÁVIA BA


Flávia Ba
Centro de Estudos Comparatistas – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Delmar Gonçalves n’A Curva do Rio – exemplos de literatura em diáspora




                                         
No momento actual o conceito de hibridez é amiúde celebrado sob a forma de festivais culturais ou eventos ligados às mais diversas manifestações artísticas. No entanto, urge repensar a condição também amiúde angustiante do entre-lugar, sobretudo dos indivíduos para os quais o cosmopolitismo, contrariamente ao que terá afirmado Ulf Hannerz no ensaio «Cosmopolitans and Locals in a World Culture» (1991), não constitui fruto de uma escolha pessoal mas antes objecto de circunstâncias pessoais e históricas muito específicas. Este é o ponto onde Delmar se encontra n’A Curva do Rio de V.S.Naipaul.

Como afirmou George Lamming (2000: 20) em Regreso al hogar, Conversaciones II:
la soberanía de una literatura  depende de la posesión del texto por toda la sociedad a través del más variado territorio de mediación. El texto tiene que hacerse familiar y cosa habitual de la conversatión cotidiana. Los libros solo siguen vivos cuando son comentados en una variedad de situaciones por personas que roconocen que el libro habla de ellos e pudo haber originado en ellos.

Depreende-se das palavras de Lamming que o escritor desempenha a função de mediador, possuindo a capacidade de transferir a sua vivência para as pessoas que com ele partilham um mundo diverso e divergente. É esta experiência de mediação que V.S.Naipaul e Delmar Gonçalves partilham com os seus leitores. Uma mediação orientada pela também comum vivência diaspórica e consequente experiência do entre-lugar.
Há uma ideia feita, mas em tudo errada, de que ser-se exilado é sinónimo de afastamento, isolamento, de separação desesperada do local de origem. Bom seria se essa separação delineada com uma precisão cirúrgica fosse verdadeira, porque então ao menos ter-se-ia o consolo de saber que o que ficou para trás é, de certa forma, impensável e completamente irrecuperável (Said, 1993: 52)

As palavras de Said ilustram outro ponto de contacto entre as narrativas pessoais de Naipaul A Curva do Rio (1979) e de Gonçalves Mestiço de Corpo Inteiro (2006). Ainda que pertencendo a diferentes enquadramentos formais literários, as narrativas destes autores desmentem a suposta  “precisão cirúrgica” de separação do lugar de origem, negação contida na vivência pessoal que transparece nas respectivas narrativas. Em 2001, o Nobel da Literatura V.S. Naipaul afirma o seguinte: “I will say I am the sum of my books. Each book intuitively sensed and, in the case of fiction, intuitively worked out, stands on what has gone before, and grows out of it”. A experiência de expatriação vivida por Salim em A Curva do Rio coincide com a vivência ambicronotópica de Naipaul que, nascido em Trinidad, aos dezoito anos se desloca para o Reino Unido e, à medida que os anos passam, se torna num viajante e revisitante do seu ponto de origem – as Caraíbas. É precisamente desta revisitação identitária que resulta, nas palavras do próprio Naipaul, o seu universo literário. Analogamente, Delmar Gonçalves nasce em Quelimane e desloca-se para Portugal onde partilha a dupla consciência espelhada em Mestiço de Corpo Inteiro: “O meu Eu/são vários Eus/por isso/não falo por mim” («O meu Eu», 2006:41);
Sou mestiço/De corpo inteiro./Sou mestiço/não porque/ser mestiço/é melhor que ser negro/ou porque é melhor que ser branco./Sou mestiço/porque sou mesmo mestiço,/porque resulto do negro e do branco/porque não posso jamais renegar/um pouco que seja dos meus glóbulos/sanguíneos negróides e caucasóides («Dança Ancestral da Alma», 1998: 29)

Ainda que substancialmente distintas no tratamento da questão do entre-lugar – do que poderá denominar-se de ambicronotopia[1]A Curva do Rio e Mestiço de Corpo Inteiro contactam analogamente (1) na visão cosmopolita proporcionada pela experiência de expatriação dos respectivos autores civis; (2) na centralidade do espaço geográfico que  condiciona fortemente o questionamento identitário; (3) no papel charneira que Salim e o sujeito de Mestiço de Corpo Inteiro desempenham enquanto mediadores entre Europa e África. Neste terceiro ponto de contacto, enquanto em A Curva do Rio a representação cronotópica da Europa e de África é feita a partir de um permanente fluxo de contaminação histórica que imbrica espaços e tempos de forma angustiantemente nihilista, em Mestiço de Corpo Inteiro a “curva do rio” – encruzilhada por excelência – desemboca na assertividade identitária: “Tenho coração e alma/Negra/E a África/Dança em mim” (1998:21). Por outras palavras: Naipaul apresenta-nos em A Curva do Rio uma personagem que vive literal e identitariamente na curva do rio, enquanto Delmar nos apresenta o dilema da curva mestiça. O sujeito de Delmar encontra no caudal do rio um caminho que reafirma positiva e humanisticamente a sua condição; Salim permanece nessa encruzilhada e prossegue viagem; o sujeito de Delmar, ainda que na inevitável natureza  híbrida “Je suis un noir pour les blancs/Et blanc pour les noirs/Mais je suis métis” («L’énigme», 1997), apresenta uma visão construtiva e optimista de um Moçambique que  reclama como seu (cf. «Exercício sobre a Moçambicanidade», 2006; «Moçambique eternamente berço», 2001); já Salim descrê de forma assertivamente céptica numa sociedade, num país pós-colonial figurado no Zaire de Mobutu Sese Seko:
Alguns jornais falavam de fim do feudalismo, do alvorecer de uma nova era. Mas o que sucedera não tinha nada de novo. Determinadas pessoas haviam perdido o poder e tinham sido fisicamente destruídas. Isso em África não era novo; aliás era a mais velha das leis (A Curva do Rio, 45)

A condição de deslocação evocada em A Curva do Rio e em Mestiço de Corpo Inteiro  imprime a ambas as narrativas o que Edward Said, falando sobre o exílio e a expatriação,  caracteriza como fonte “não de aculturação e adaptação, mas antes de volatilidade e de instabilidade” (Said, 1993: 53). No caso da narrativa de Naipaul, Salim em África deseja a Europa e na oportunidade em que se desloca a Londres, rapidamente se ancora em pontos de remissão para a África que conhece. É nessa situação volátil e instável que Salim, no final da narrativa, dobra a curva do rio em nova viagem. Já o sujeito de Delmar, também instável (mas não volátil) na dupla consciência mestiça, anseia pelo regresso na curva do rio europeu onde se encontra: “Tu uma pérola no Índico/E eu/um viandante/Encalhado no Atlântico/(…)Como sempre:/Eu sou tu, tu és eu/Não te esqueças/Moçambique/Voltarei!” («Voltarei», 1995:54).  Embora as condições de exílio e de diáspora apresentem especificidades que as distinguem implicam, como traço comum,  uma fonte de instabilidade e volatilidade caracterizada por laços de lealdade para com os pontos de origem dos indivíduos e que poderão acicatar, da parte dos sujeitos em condição diaspórica, a assertividade de pertença identitária à motherland, o que parece ser o caso do sujeito de Delmar. Já o Salim de Naipaul, o sujeito diaspórico em trânsito na curva do rio, perde-se no fluxo do rio, sobretudo quando o expropriam dos seus bens em nome da nacionalização em curso – está claramente em lado nenhum o que imprime o carácter céptico à narrativa de Naipaul. Ao contrário do sujeito do poema «Voltarei» (1995), Salim poderá ser considerado uma projecção do “homeless cosmopolitan” em que Naipaul, segundo o seu biógrafo Bruce King, se tornou.
Na medida do que tem vindo a ser referido ao longo desta apresentação, A Curva do Rio e Mestiço de Corpo Inteiro constituem exemplos de literatura em diáspora. Tal como o próprio conceito de diáspora é viajante por  exigir um enquadramento histórico e social que especifique as diferentes situações em que o movimento diaspórico ocorre, da mesma forma as narrativas que ora se comparam são narrativas viajantes feitas por viajantes. Em A Curva do Rio, a viagem é melancólica perspectivando, nas palavras de Erica Jonhson em «'Provincializing Europe': The Postcolonial Urban Uncanny in V.S.Naipaul’s A Bend in the River» (2010), uma África onde a fraqueza, a vulnerabilidade, a ignorância e a arrogância são a dominante, fruto das impressões de viagem que Naipaul, em 1975, efectuou entre o Rio Congo e Kinshasa. Em Mestiço de Corpo Inteiro e no conto O Regresso Adiado de Malfez Razão Massamo (1996), os respectivos sujeito e protagonista assumem-se como viandantes na sua condição híbrida e viajantes em processo de retorno às suas origens. Por este motivo, e tal como afirmado pelo escritor Jorge Viegas no posfácio a Mestiço de Corpo Inteiro, “as pontes para ligarem as pessoas que, à partida habitam mundos diferentes, são sempre de carácter transitório” (Mestiço de Corpo Inteiro, 2006: 83). Assim, estas pontes de carácter transitório que também caracterizam os elos que se estabelecem entre as comunidades diaspóricas e os destinos de acolhimento tornam um Mestiço de Corpo Inteiro num indivíduo inalienavelmente dispórico nas suas origens. Ou, n’A Curva do Rio. É nessa esquina fluvial que Naipaul e Delmar poderão ser encontrados.

Gonçalves, Delmar (2006), Mestiço de Corpo Inteiro, Lisboa: Minerva
Naipaul, V.S. (1990), A Curva do Rio, Lisboa: D.Quixote
Naipaul, V.S. (2002), “Two Worlds”, in PMLA, 3, 479-486
Johnson, Erica (2010) “'Provincializing Europe': The Postcolonial Urban Uncanny in V.S.Naipaul’s A Bend in the River» in JNT: Journal of Narrative Theory, 40.2, 209-230
Lamming, George (2000), Regreso al hogar, Conversaciones II, St. Martin: House of Nehesi Publishers.
Said, Edward W. (1993), «Exílio Intelectual: Expatriados e Marginais» in Representações do Intelectual, As palestras de Reith de 1993, Lisboa, Edições Colibri.



[1] A narrativa de Naipaul problematiza a experiência de expatriação e o confronto entre dois mundos que Salim simultaneamente deseja e repudia enquanto que em Mestiço de Corpo Inteiro o sujeito é apresentado como a problemática da  hibridez física – a mestiçagem – enquanto condição identitária inalienável