domingo, 9 de março de 2014

"ENTRE DOIS RIOS COM MARGENS" por MARIA DOVIGO

O VELHO IMBONDEIRO OU A LIGAÇÃO DA HUMANIDADE EM TRÂNSITO
(NOTAS A "ENTRE DOIS RIOS COM MARGENS")
Não desligo o labor poético do entendimento do humano concreto e da vontade de fazer o bem. Assim, o livro do Delmar Maia Gonçalves, Entre dois rios com margens, é exemplo de um sincero contributo do poeta exilado para o esforço coletivo da emancipação da humanidade em trânsito, em que o poeta “se revela na generosidade com que se dá aos outros”.
O fio narrativo do conjunto dos poemas é o homem que se exilia da sua terra devastada para procurar nos longes a salvação da terra da infância, o tempo que “é o centro crucial do furacão da vida”. Como nos contos de tradição oral, o herói parte para compensar uma perda, a perda da harmonia, do canto, da paz. O poeta canta “sobre as cinzas”, com uma linguagem fragmentada, caótica, expressão da perda da harmonia. A viagem é uma religação com a raíz, um “imigro de mim para mim mesmo”, a procura do centro perdido, um pedaço na “esfera do caos”.
É na viagem deste herói poeta que se juntam as esperanças da coletividade. O poeta é a esperança no retorno da harmonia, o que procura “o fio da palavra vital”. Em ele resistem as memórias da língua dos pássaros, ele porta consigo a memória das árvores milenares, do velho imbondeiro africano, o irmão da lua,  que com ele faz a viagem do mundo. Ele é o intérprete da grande voz cósmica, isto é, ordenadora, que se ouve nas conchas. Ele, o poeta exilado, o poeta em trânsito, pensa em movimento, como as “ondas do mar”. Procura incessante a esperança, esse momento em que ao seu “país as aves regress[em], e com elas a alegria, a paz, a vida e os poetas”. Esse pensamento que, como o vento, “sopra violento”, percorre dualidades, “de mim para mim”, entre “dois rios com margens”, entre o silêncio e as vozes, os “silêncios que falam”, “o murmúrio dos novos tempos”. A “solidão plural do berço umbilical” é “bálsamo revigorante” do poeta que vê “os caminhos se encurtarem e as portas se fecharem”. Este passo entre a dualidade e a identificação, é o primeiro movimento do pensamento para conseguir a ligação e dar sentido à dor da fragmentação, essa dor que o poeta quer “exorcizar” com a escrita. Assim se afirma o poeta exilado como aquele vai buscar a luz da aurora, a vida e a esperança, o “despertar” para a coletividade.
Pela lei da isomorfia da imaginação humana, o poeta consegue a síntese em que se identificam as duas margens do rio, a superação dessa primeira barreira para a comunicação que faz uno o percurso do viajante e do poeta. A viagem poética revela que a paz, a abundância e o canto são três palavras para a harmonia única do humano, a expressão da vida renovada, vida material, vida anímica, vida sonhada, na primavera esperada da língua e da comunidade.
De entre todas as imagens de esperança, nenhuma tão forte como a da árvore, a “força integradora do mundo”, em expressão do crítico Gaston Bachelard, os velhos imbondeiros africanos que “repousam” no poeta. Por aparente paradoxo, a raiz da árvore é ligação à terra mãe e nó de ligações que reúne todos os caminhos do mundo. A voz cósmica das árvores, tão conhecida pela tradição poética da minha Galiza natal, a voz das “longínquas avós das carvalheiras” do poeta galego Celso Emílio Ferreiro ou dos pinheiros, arautos da redenção da terra escrava, do poeta Eduardo Pondal. Assim é o imbondeiro, que liga o sagrado, o poético e o histórico, o humano e o natural. O imbondeiro ressequido do poema “África”, imagem da devastação da pátria, tão semelhante à do carvalho abatido do poema de Rosalia de Castro “Os carvalhos”. O imbondeiro irmão da lua, como os pinheiros que com o luar dialogam no poema que deu origem ao hino galego, a lua que banha “a esperança adormecida” do poeta.
Encontram os poetas a universalidade da imaginação, esse “céu invisível”, na diversidade material da vida que liga o natural e o humano. Encontra assim o poeta sentido à sua própria viagem de exílio, à afirmação da liberdade da criação do “nómada e pássaro livre em voo rasante”, como se identifica no poema “Eu sou eu II”. O repouso já não está no espaço físico exterior, uma das margens do rio, mas no espaço linguístico interior, a outra margem, o espaço da língua recriado no poema “Trabalho da língua”, que dá a dimensão da humanidade e do labor do poeta que não distingue o individual e o coletivo, essa solidão plural que descobre a identidade do poeta errante em ser “a voz destemida dos sem voz”, algumas das muitas dualidades que identificam este livro de poemas. A língua que se liga aos ritmos vitais da natureza, ao rio que tudo e todos une, encontra o seu renascer nos versos de Delmar Maia Gonçalves.

Maria Dovigo



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