quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sinopse Biobibliográfica - Leituras em Diagonal

1. Uma das formas de caracterizar o Delmar seria a de apelidá-lo de adido cultural itinerante do seu país natal, Moçambique. Porque ele, para além do que escreve, é um divulgador extremamente operativo da poesia moçambicana (e não só) em livrarias e noutros espaços culturais de Lisboa, como declamador.
O Delmar tem o hábito de datar os seus poemas e neles apor a indicação expressa da localidade onde foram escritos. Os poemas que estão a ser compulsados por mim foram todos escritos em Portugal nos lugares de Lisboa, Parede, Monte Estoril, Algés, Paço de Arcos, com excepção de um, o qual tem a indicação da cidade de Maputo.
Nalguns dos poemas, que eu entendo ser os menos conseguidos, o autor funciona como o eco da ideologia veiculada pelos comissários políticos da revolução que ocorreu no seu país: "Na minha pátria/ não há pretos nem brancos, / há moçambicanos! / Na minha pátria / não há mulatos nem monhés/ há moçambicanos!/ E moçambicano/ é aquele que / sente o pulsar da / pátria/ Moçambicano / é aquele que a vive."
Mas a poesia do Delmar evoluí qualitativamente quando ele sonha com o passado da sua terra e das suas gentes, cuja memória está terrivelmente marcada por um sofrimento que excede o imaginável, e parece pesar de forma asfixiante sobre o futuro: "Estava sonhando um sonho triste / dormindo em minha cama. / Via os ancestrais/ gritando levados da imensa África/ Via os ancestrais / chorando feitos escravos. / Via os ancestrais / chorando familiares separados. / Via os ancestrais / chorando futuro incerto."

2. Conturbado pelas grandes angústias e pelos grandes medos que se abateram sobre os seus antepassados o poeta abandona o casulo da sua singularidade subjectiva e assume-se como sendo a voz inadiável daqueles a quem em vida foi negado o direito de ser e de dizer: "Não sou mais eu/ quem grita de raiva por todas aquelas injustiças cometidas/ no passado." - "Não sou mais eu / quem chora os exílios forçados no presente." - "Sou apenas e só um porta-voz involuntário/ de uma situação que se gerou."
E a incerteza do futuro tem uma das suas raízes na presença ou na ausência de algumas aves de taciturno aspecto: "Mau agoiro/ aquele que/ os Corvos/ trazem com a sua/ anunciada presença./ Bom agoiro/ aquele em que/ se anuncia a ausência dos Corvos." o que escapa ao nosso entendimento são as razões que levaram o poeta a escrever corvos com maiúscula.
Dois dos poemas do Delmar, sob os títulos de "Vida morreu em Nicoadala" e "O rosto da morte em Namacurra" encontram-se ligados por dois pontos comuns.
O primeiro deve-se ao facto de as localidades de Namacurra e Nicoadala se situarem a escassa distância no interior da província da Zambézia, província esta donde o Delmar é originário.
O segundo ponto comum é que os poemas têm como tema a morte, mas sem a presença efectiva dos que morreram: "O dia está calmo. Nem chove, nem chuvisca. / Está sol, / um sol que queima. / Os campos estão secos, / o capim é dono da terra./ Não se vislumbram homens, / nem pássaros, nem frutos./ Não se vislumbra vida. /Reina o silêncio, / um silêncio de morte. / Em Nicoadala / o tempo parou/ e a vida morreu." E não é só a natureza e a suas obras que morreram. Também as máquinas criadas pelo homem sossobram irremedialvelmente: "Em Namacurra um avião/ que não tinha asas/ e um carro sem rodas. / Ambos tentaram / sobreviver./ Mas em vão!/ Abraçaram/ a morte/ infalivelmente."
Falar, sem alarde, da morte das cousas naturais e das máquinas, é um artifício pelo qual o autor nos alerta para a morte massiva dos homens, mulheres e crianças, ao mesmo tempo joguetes e vítimas inocentes dos interesses obscuros dos que entendem ser os amos da terra.
Num outro poema, e como que à maneira de Martin Luther King, o poeta sonha com desígnios de Deus, independentemente das divisões que se albergam no mais fundo do coração do homem: "Tive um sonho/ em que o Muçulmano, / rezava com o Católico,/ o Sikh com o Muçulmano" - "o Católico com o Judeu, /e todas juntos com Deus."
Tendo em conta a minha condição de pessimista inveterado julgo que "O futuro que não chegou" sonhado nesse poema do Delmar nunca chegará. O ecumenismo será sempre um ideal a atingir, mas dificilmente sairá do campo das boas intenções, porque serão sempre poucos os homens capazes de se libertarem dos seus códigos interiores no sentido de tolerarem os dos outros.

3. Confrangido pelo desacerto das relações humanas o poeta idealiza a possibilidade de conversar muito terra-a-terra com Nosso Senhor Jesus Cristo, e apresentar-Lhe algumas perguntas para as quais não encontra resposta:"Perguntarei ao "Cristo"/ porque será que/ sendo judeu, / o amam tanto, /odiando os outros judeus, Perguntarei ao Cristo/ porque odeiam tanto / o homem negro,/ os homens do norte." Perguntas estas que não teriam razão de ser caso os homens tivessem interiorizado as virtudes da humildade, do amor e da compaixão exaltadas na mensagem de Jesus Cristo.
Moçambicano na diáspora o Delmar transporta amorosamente na sua memória as imagens de um tempo africano, "Em sonhos nostálgicos/ revejo mofanas e adultos/ semi-nus e descalços percorrendo/ a Zalala", e essas imagens são tão fortes e imprevistas que fazem parte integrante do seu ser:"Moçambique/ tu danças em mim/ e eu em ti./ Não te esqueças/ Moçambique:/ eu sou tu/ e tu és eu!".
São ainda de referir as poesias que têm como temas ciclos históricos já encerrados. A primeira intitulada de "Lembrar Timor", rememora o morticínio do povo timorense na sua luta pela liberdade: " Terra de esperança/ chamada desespero./ Terra mártir/ de povo humilhado."
A segunda evoca Samora Machel, a figura central e emblemática da revolução moçambicana, e primeiro presidente do país: "O rosto/ uma expressão viva de esperança./ As mãos/ sinónimo de vitalidade. / O corpo / sinónimo de espontaneidade. / A voz / um ecoar de vozes adormecidas." Os versos relativos às mãos de Samora condizem com a opinião do jornalista Carlos Cardoso que sobre as mesmas escreveu: "As suas mãos nunca paravam. Ficavam gravadas nas mentes das pessoas através dos contacto pessoal, das fotografias nos jornais, em filmes, e através de reuniões e comícios".

In Antologia "Inquietação", Editorial Minerva, Lisboa, 2006.
Jorge Viegas
(Poeta e Escritor Moçambicano)
Quinta do Conde, 2006.

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